O que nos resta é a humanidade!

Breves ponderações a respeito das diferentes óticas sobre a situação dos refugiados.

Eu poderia começar relembrando a comovente cena da morte de Alan Kurdi, o menino sírio de 3 anos de idade que apareceu morto na costa da Turquia no dia 02 de setembro de 2015, depois de um naufrágio na tentativa de fugir de seu país e que tomou a frente dos noticiários em todo o mundo. Mas também poderia escolher o relato de Oyarzo, cidadão chileno, que comentou, em entrevista à CNN em 2021, sobre as cenas que presenciou quando saiu de casa para registrar uma manifestação anti-imigrantes.

Oyarzo disse que chegou ao calçadão da cidade e viu um grupo de manifestantes pegando sete jovens venezuelanos, um deles sem uma perna, e tentando atacá-los fisicamente.

“Em outras partes da cidade, os manifestantes seguravam bandeiras chilenas com mensagens dizendo “Venezuelanos sujos saiam do nosso país” ou “Os direitos humanos são para os chilenos” e entoavam o hino nacional. Também gritavam com os imigrantes, muitos deles famílias com filhos pequenos, para que retornassem ao seu país. Alguns até cuspiram neles e incendiaram roupas, carrinhos, brinquedos e colchões.”

Mas de todas as histórias tensas e tristes que li e ouvi na minha pesquisa para esse artigo, nenhuma encaixou melhor do que o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe na Barra da Tijuca (RJ) em fevereiro deste ano. A crueldade desse crime ganhou manchetes e escancarou o racismo e xenofobia existente em território brasileiro. Esses e tantos outros acontecimentos me levou aos questionamentos… o que mais está acontecendo debaixo dos nossos narizes, dentro do nosso país e como será que poderíamos solucionar?

Para começarmos a entender o motivo de tanto amargor relacionado aos imigrantes, precisamos voltar um pouquinho no tempo. A primeira onda de imigração que o Brasil sofreu foi a partir de 1500, tanto pela necessidade de Portugal para colonizar as terras, quanto pelo fluxo imigratório forçado com cerca de 5 milhões de africanos trazidos para trabalharem como escravos. A partir do século XIX, após a abolição da escravidão e como forma de alcançar o branqueamento da população brasileira, a imigração de europeus brancos foi incentivada com hospedagem gratuita, terras e empregos. No séc. XX, os estrangeiros começaram a participar dos movimentos trabalhistas, e então foi publicado o Decreto nº 1.641 – primeira lei de expulsão de estrangeiros do Brasil – que dizia que qualquer estrangeiro que afetasse a tranquilidade pública poderia ser expulso do país. Somente após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que gerou um número expressivo de refugiados no mundo, a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, definindo o primeiro conceito de refugiado e direitos dessas pessoas.

Atualmente, a ONU define como refugiados “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.” Importante esclarecer que os refugiados são imigrantes, mas nem todo imigrante é um refugiado. As pessoas que saem de seus locais de origem por questões sociais e econômicas, e por livre e espontânea vontade, são imigrantes. Os refugiados são forçados à imigração por uma série de motivos destacados no conceito acima.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) – conhecido como Agência da ONU para Refugiados – a quantidade de refugiados no mundo passa dos 65 milhões. Na América Latina, a instabilidade econômica e o crime organizado costumam ser os agentes causadores das imigrações forçadas. Deixar seu país de origem para fugir de conflitos ou perseguições é a maior causa dos refugiados no Brasil. Porém desde 2020, outros fatores também têm sido responsáveis pelo fluxo imigratório, como o endurecimento das políticas de imigração de alguns países, um golpe na Bolívia, protestos no Chile e na Colômbia, uma crise política no Peru e o regime autoritário da Venezuela.

De acordo com dados da ONU, a estimativa de pessoas reconhecidas como refugiadas no Brasil ao final de 2020 foi de 57.099. Desse total de refugiados, a maior parte é da Venezuela (46.412), seguida da Síria (3.594) e Congo (1.050). Além disso, o maior volume de solicitações de refúgio no país ocorreu no estado de Roraima (60%), seguido pelo Amazonas (10%) e São Paulo (9%). O que é justificado por serem os dois estados mais perto da fronteira, seguido pelo estado com maior oferta de empregos. A cada 100 refugiados que saem de outros continentes em direção à América do Sul, 63 ficam no Brasil.

O fato de a esmagadora maioria dos refugiados serem venezuelanos é justificado pela crise que se iniciou em 2013, com conflitos políticos, perseguições ideológicas e desaceleração da economia, levando o país ao colapso. Hiperinflação, cortes de energia, desemprego, escassez de alimentos, água e medicamentos essenciais, fizeram com que mais de cinco milhões de venezuelanos deixassem a Venezuela, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). O crescimento de venezuelanos cruzando a fronteira fez com que o Brasil acolhesse muito mais refugiados entre 2019 e 2020 que nos anos anteriores. O número, entretanto, voltou a cair em 2021, quando foram acolhidos apenas 771 refugiados.

O fechamento de fronteiras durante a pandemia, provavelmente é uma das maiores responsáveis pela queda no número de refugiados recebidos a partir de 2021. Mesmo após o início da abertura das fronteiras terrestres, muitos imigrantes não tinham a vacina contra a Covid-19, necessária para continuar sua viagem, pois muitos já estavam em trânsito quando a vacina foi liberada. Devido à queda no número de refugiados, Dorival Guimarães, professor de Direito Internacional do IBMEC analisou a expectativa de imigrações em 2022 (Entrevista de 2020).

“Com a diminuição dos índices da pandemia, acredito que as fronteiras, naturalmente, se abram mais. Porém, há um menor número de conflitos no entorno do país que possam gerar deslocamento de pessoas para cá. Essa diminuição de conflitos em países vizinhos gera um menor número de deslocamento. Outro ponto que afasta esses indivíduos é a crise econômica, que faz com que esses refugiados busquem outros países, causando uma procura menor pelo Brasil.”

Devido a pandemia, o governo brasileiro editou portarias que dificultavam o acesso de pessoas estrangeiras ao território brasileiro. Essas medidas, no entanto, foram alvo de críticas sociais e até da Justiça, por serem consideradas discriminatórias. A crítica se intensifica pelo fato de ter tido uma flexibilidade para entradas de pessoas de outros países no Brasil por via aérea, sob o pretexto de incentivar o turismo, desde agosto de 2021. Camila Asano, diretora de programas da Conectas exemplificou.

“Famílias que consigam chegar ao Brasil pelas fronteiras terrestres, deixando para trás guerras e conflitos, não podem solicitar refúgio e são deportadas, enquanto turistas com poder aquisitivo que viajem de avião estão autorizados a entrar. A seletividade discriminatória tem marcado as decisões do governo para reabertura das fronteiras”.

De acordo com Patrícia Nabuco Martuscelli, doutora em Ciência Política pela USP e especialista em questões de migração e refúgio “Houve uma restrição migratória e negação do direito a solicitar refúgio. Isso viola a Convenção de Genebra de 1951 e o Protocolo de 1967, dos quais o Brasil faz parte, a própria lei 9.474 [que regula a questão do refúgio no país], a Lei de Migração e a Constituição Federal.”

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os estrangeiros passaram a ser protegidos constitucionalmente no Brasil, segundo o seu artigo 5º, caput:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”

A Convenção de Genebra de 1951 é um tratado global que define quem vem a ser um refugiado e esclarece os primeiros direitos e deveres entre os refugiados e os países que os acolhem. A Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, por fim, são os meios através dos quais é assegurado que qualquer pessoa, em caso de necessidade, possa exercer o direito de procurar e receber refúgio em outro país. Já a nova Lei de Imigração trata o movimento imigratório como um direito humano, combatendo a xenofobia e a discriminação contra o imigrante.

Um dos fatos mais conhecidos pelo público são as condições degradantes e perigosas em que essas viagens são realizadas. Temos como exemplo, o relato de uma jovem de 26 anos que pediu anonimato em entrevista à CNN em 2021. Ela e a irmã pagaram aos contrabandistas para levá-las ao Chile. Mas a trilha é traiçoeira e envolve caminhar longas horas por um planalto a uma altitude de mais de 3.600 metros e em meio ao frio das montanhas bolivianas. “Foi realmente assustador porque eu não sabia o que podia acontecer com a gente. Não sabíamos se iam nos roubar, o frio estava terrível, minha cabeça doía e por causa da altura senti que meus ouvidos iam explodir. Eu quase desmaiei”. Quando finalmente chegou ao Chile, ficou chocada com a quantidade de imigrantes que viviam nas ruas.

“Fiquei muito triste, tive vontade de chorar. Você vê muitas coisas que não pode imaginar, como pais roubando para alimentar seus filhos. No início, eu queria voltar para a Bolívia, mas não conseguia me imaginar tendo que fazer a travessia de novo”.

A explosão demográfica causada pelo fluxo imigratório intenso é um dos principais desafios para o país que os recebe.  Compromete o acesso à serviços essenciais como à saúde, ao saneamento, à segurança e à educação. Lembrando que muitos desses serviços já se encontram em seu limite muito antes do fluxo de imigrantes aumentar. As oportunidades de trabalho também são afetadas pois muitos não conseguem validar o próprio diploma. O resultado é a mão de obra barata e desvalorizada, além da exposição à exploração sexual para sobrevivência.

De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2019 havia cerca de 147,7 mil estrangeiros registrados no mercado de trabalho formal no Brasil.  Apesar de ser o maior número da década (em 2010 eram 55,1 mil), esse número representa apenas 18,3% do total de estrangeiros no país. O que reforça uma dificuldade dos imigrantes em serem incluídos no mercado de trabalho.

O estado de miséria e a fome entre os refugiados pode causar aumento da criminalidade em decorrência da falta de estrutura e de organização ao receber essas pessoas. Os adolescentes correm risco ainda maior em um ambiente propício ao recrutamento de gangues, ao tráfico de drogas e à exploração do trabalho. É claro que o tamanho desses impactos depende muito da organização de cada país ao acolher os refugiados, ressalta o professor de Atualidades do Poliedro Curso, Daniel Pereira Leite.

“Como regra geral, receber refugiados coloca pressão sobre a economia a partir de dois eixos principais. Em primeiro lugar, o acolhimento é caro, seja pelos gastos com estrutura de habitação, seja com saúde ou educação. Além disso, uma onda de refugiados pode afetar o mercado de trabalho. Com mais mão de obra disponível, há um aumento da concorrência e possível queda da média dos salários.”

As dificuldades enfrentadas por essas pessoas não estão somente na árdua travessia até o destino. Ao chegar aqui, elas sofrem xenofobia, racismo e dificuldades de adaptação devido ao choque cultural, em especial quando há uma diferença étnica e religiosa para o perfil do país que os recebe. Sem conhecerem o novo idioma, dificilmente conseguem se integrar e essa é a principal barreira para a conquista de emprego. A falta de documentação das crianças também é um problema, já que dificulta o acesso a serviços, privando-os de direitos básicos.

Quando a imigração envolve pessoas que sofrem perseguições políticas – asilo político – os impactos diplomáticos são maiores. Estes fatores podem gerar instabilidades diplomáticas entre os países envolvidos. A situação pode ser usada como propaganda contra o Estado agressor, como fator intensificador de sanções ou como forma de desestabilizar governos insuflando a população contra governantes e aumentando a insatisfação popular.

A situação se agrava quando os países-destino associam o atual fluxo imigratório à riscos de terrorismo e de criminalidade. Se preocupam com as consequências econômicas negativas e decidem enrijecer leis e adotar medidas duras para não acolher refugiados. Contudo, no Brasil, o cenário costuma ser diferente. Apesar de inúmeros desafios, existem grupos sociais e ONGs que ajudam a condição de quem enfrenta essa dura realidade. Além disso, o país vem avançando em sua legislação e adotando medidas para regulamentar a concessão de asilo.

De acordo com Valle, professor de Atualidades, acolher os refugiados deveria ser uma obrigação à luz do direito internacional, como compromisso ético e moral. A Agência da ONU para Refugiados reitera que estas pessoas têm os mesmos direitos que qualquer outro cidadão estrangeiro residente no país.

“Parte de uma cidadania universal que deveria transcender nacionalidades, etnias ou religiões, mas que, sem o planejamento adequado, pode agravar problemas como desemprego, aumento de bolsões de pobreza, sobrecarga no acesso a serviços públicos e o acirramento de tensões motivadas por intolerância e disputas socioculturais”.

Levando em consideração a extensão territorial, o Brasil tem um baixo número de imigrantes: cerca de 1% da população total do país. A grande questão é que o estado de Roraima não tem capacidade para receber mais pessoas, mas os outros estados têm. Mediante esse fato, é necessário realizar um movimento de interiorização para recebê-los, aliviando a sobrecarga dos serviços essenciais.

Economistas afirmam que investir em refugiados pode trazer impactos positivos para a economia. Em geral, eles têm bom nível de escolaridade e podem aumentar a produtividade nacional, especialmente por causa do envelhecimento da população brasileira. Eles oferecem capital humano, ideias e novas habilidades, costumam aceitar empregos rejeitados, montam seus próprios negócios, gerando vagas no mercado de trabalho. Além de contribuir com o desenvolvimento cultural e social do nosso país. Buscando essa integração facilitada, muitas ONGs promovem ações com aulas de português, capacitação profissional, cuidados com a saúde mental, assistência médica e jurídica.

Assim como no restante do mundo, a conquista dos direitos dos imigrantes no Brasil é recente, marcando um longo período de omissão do Estado brasileiro. Hoje o país possui uma legislação considerada avançada sobre à imigração, prevendo a proteção e o respeito dos direitos fundamentais dessas pessoas. Apesar do avanço legislativo, é preciso que medidas sejam tomadas para que essas pessoas sejam incluídas socialmente e tratadas de maneira digna.

O acolhimento e o tratamento com respeito e dignidade são a melhor solução para que o mundo supere essa crise. Pensar como um cidadão responsável, ter humanidade e prezar pelos direitos básicos, implica perceber que quando o outro precisa de nossa ajuda é necessário que nos esforcemos para ajudá-lo.

Outro ponto de vista para defender a ajuda humanitária é pensar em nosso amanhã. Nenhum país do mundo está imune a conflitos, à dominação por organizações criminosas ou a sofrerem com a falta de algum recurso. Se isso nos atingir amanhã, talvez estejamos sujeitos a cair na condição de refugiados.

Se é necessário recordar para nunca forçarmos a partida de alguém de sua pátria, seremos a memória. Se guerras e perseguições afastam pessoas de suas casas, trabalho, familiares e país, seremos o abraço. Milhares de pessoas buscam refúgio no Brasil e queremos ser o apoio para quem tem, pela frente, uma nova língua para aprender e muitos desafios para fortalecer suas histórias. Se nós somos o solo estrangeiro de quem busca melhores perspectivas de vida, queremos ser o lar.

Manifesto da Organização Social Compassiva que auxilia refugiados em situação de vulnerabilidade na capital paulistana.

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